Érika guarda as roupas do filho que perdeu, afirmando que a morte dele foi provocada pela demora no parto
LÉO MOTTA/JC IMAGEM
Cinthia Ferreira
“Eu jamais imaginei que ia sair com o meu filho dentro de um saco, enrolado. Tinha em mente que ia sair com ele vivo, que a gente ia da maternidade pra casa e não para o cemitério.” O relato emocionado é Érika de Souza Campos, 34 anos. A operadora de caixa entrou em trabalho de parto com 41 semanas de gestação. Moradora de Jaboatão dos Guararapes, não conseguiu vagas em maternidades do município e peregrinou, durante quase uma semana, de hospital em hospital, até conseguir atendimento em Olinda, no Hospital do Tricentenário. Érika afirma que a demora no atendimento foi fatal e destruiu o seu sonho de ter o segundo filho – o mais velho tem 17 anos.
Com insuficiência respiratória, Leonardo não sobreviveu. “Durante uma semana, peregrinei sem ter ajuda de ninguém”, lamenta, mostrando as roupinhas que seriam do filho, todas guardadas. “Quando estava com muita dor, implorando pra fazerem meu parto, ouvi: ‘na hora de fazer você não sentiu dor’”. Érika diz que só foi levada para a sala de parto quando estava com falta de ar e as outras pacientes pediram ajuda à equipe médica.
A história de Érika ocorreu em 2016. Ela procurou a justiça e, em junho, uma audiência de conciliação ocorreu no Fórum de Olinda. Mas não houve acordo: Érika culpa toda a equipe médica pela morte de seu filho. O caso dela não é isolado. Por falta de maternidades, muitas mulheres da Região Metropolitana do Recife e também do interior têm tido dificuldades para dar à luz seus bebês nos municípios onde vivem.
A dona de casa Jaqueline Cristina da Silva, 22 anos, mora em Araçoiaba, cidade também sem maternidade. Grávida de gêmeos, quando percebeu que o parto estava próximo, foi transferida para o Recife – não encontrou vagas nas cidades vizinhas. No percurso, um dos bebês, uma menina que se chama Gabrielly, acabou nascendo dentro da ambulância. O outro, Gustavo, só nasceria dois dias depois no Centro Integrado de Saúde, o Cisam, na Zona Norte do Recife.
Aos três meses, ele permanece no hospital, internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). A mãe sai de Araçoiaba para visitá-lo diariamente. “É uma dificuldade muito grande. Estou desempregada e gasto, só com transporte, quase R$ 200 por mês”, revela.
Além de Araçoiaba, São Lourenço da Mata, Itapissuma, Igarassu, Itamaracá, Moreno e Paulista não realizam partos: ou porque não possuem maternidades, ou porque elas não funcionam.
A dona de casa Jéssica Bianca Xavier, de 22 anos, mora em Paulista, mas o filho mais velho, hoje aos 3 anos, nasceu em Olinda – depois que ela passou por várias maternidades. Grávida novamente, com cinco meses, mais uma vez ela vive a incerteza: não sabe onde o filho irá nascer. “É muito difícil. A pessoa sentindo dor e ficar andando, procurando maternidade”, lamenta.
Sem opção nas cidades onde vivem, muitas gestantes acabam vindo para o Recife. Dados da Secretaria Estadual de Saúde revelam que, em 2017, mais de 49 mil bebês nasceram na capital. Desse total, entre 30 e 35% das mulheres vieram de outras cidades. As quatro
SUPERLOTAÇÃO
Um dos locais que passa por superlotação, no Recife, é o Hospital das Clínicas, ligado à Universidade Federal de Pernambuco. Referência em partos de risco, por conta da demanda, chega a fazer partos de risco habitual em mulheres que chegam sem ser pela Central de Regulação. A Unidade de Cuidados Intermediários Convencionais é uma das mais cheias. No dia em que a reportagem do esteve no local, a UCI estava com 14 bebês, quando tem capacidade apenas para cinco. A sala de expectação, onde as gestantes aguardam para ter os bebês, tinha 33 mulheres – a capacidade é para quatro. Por conta da falta de espaço, havia mulheres em macas nos corredores e também em cadeiras. “É muita gente aqui e mulheres de todos os lugares”, comentou a dona de casa Lucicláudia Trajano, internada no local.
Para o chefe da Unidade de Saúde da Mulher, Elias Melo, falta vontade política para resolver o problema. “Isso é uma questão de cidadania. Infelizmente, muitos municípios grandes do nosso estado poderiam hospedar uma maternidade, mas resolvem tomar a decisão política e financeira de não fazê-lo. Confiam que outros municípios maiores como o Recife absorvam essa demanda. Existem municípios com mais de 100 mil habitantes, no estado, sem maternidade”, relata.
OBRAS SEM FIM
Na fachada da Maternidade Brites de Albuquerque, Olinda, os tapumes cercam a obra que parece não ter fim. A unidade está fechada desde 2014 para reforma – e não é a primeira vez. Orçada em R$ 8 milhões, a obra deveria durar 12 meses, mas segue a passos lentos, mais de quatro anos depois. A ampliação prevê estrutura para realização de partos de alto risco, com 85 vagas de internação, UTI neonatal e bloco cirúrgico.
A dona de casa Márcia de Albuquerque Silva, 22 anos, mora a poucos metros da unidade, mas não conseguiu ter a filha perto de casa, como sonhou. “Ajudaria bastante porque evitaria de a gente ir de hospital em hospital”, diz.
A reforma e ampliação da Brites de Albuquerque estavam previstas no Plano de Investimento em Assistência Obstétrica de Alto Risco, lançado pelo governo do Estado, em 2012. Na época, Pernambuco tinha um déficit de 139 leitos de alto risco. O projeto, em parceria com o Ministério da Saúde, teria duração de dois anos e custo estimado em R$ 81 milhões. O objetivo era descentralizar o atendimento às gestantes pernambucanas.
Além da maternidade de Olinda, que passaria a se chamar Maternidade Metropolitana Norte de Alto Risco, o governo também anunciou a construção do Hospital da Mulher, em Caruaru – cuja obra está parada – e da Maternidade Metropolitana Sul de Alto Risco, em Jaboatão dos Guararapes. A unidade teve orçamento previsto de R$ 20 milhões: R$ 4 milhões viriam do governo do Estado, R$ 8 milhões do município e outros R$ 8 milhões do Ministério da Saúde. Mas tudo está virando entulho de uma obra inacabada e abandonada.
Em Jaboatão, em 2006, a única maternidade municipal, a Rita Barradas, foi demolida. Em 2010, um edital previa a nova construção, no bairro de Sucupira. As obras só começaram três anos depois. A previsão era de que tudo fosse concluído em 360 dias. Passados oito anos, o que se vê são ferragens expostas, paredes inacabadas e muito mato. Até os tapumes foram roubados. O custo aumentou para R$ 38 milhões. O marceneiro Ronaldo Marques, que mora perto da construção, denuncia: “Virou ponto de prostituição, roubo e tráfico de drogas”.
Há quase dois anos, o Ministério Público de Pernambuco investiga as irregularidades da Rede Materno-Infantil do Estado. “Fomos demandados pelos órgãos de classe, como o Sindicato do Médicos de Pernambuco e o Conselho Regional de Medicina”, conta o promotor Édipo Soares. “Já identificamos que há um déficit, só na Região Metropolitana, de 80 leitos para partos de risco habitual e 53 para alto risco.”
A responsabilidade de partos habituais é dos municípios, mas nem todos têm condições de manter maternidades – e nem é necessário, segundo o Sindicato dos Médicos, defendendo que a rede materno-infantil deve garantir atendimento digno às gestantes e aos seus bebês. Para isso, a solução seria a formação de consórcios entre os municípios ou ainda que os atendimentos sejam regionalizados.
“Os municípios têm que se cooperar, através de parcerias, para manter equipe completa, todos os dias da semana, com equipamentos, leitos e medicações que possam garantir um parto seguro e próximo da moradia da gestante”, afirma Cláudia Beatriz Andrade, vice-presidente do Sindicato dos Médicos.
RESPOSTAS
A Prefeitura de Olinda afirma que está realizando um estudo para reabrir, em breve, a Maternidade Brites de Albuquerque – mas não fala em prazos. A Prefeitura de Jaboatão admite que não pôde seguir com a obra abandonada e diz que houve cortes de recursos estaduais e federais. Afirma ainda que pretende adaptar o projeto para que ele possa ser, enfim, finalizado. A Secretaria Estadual de Saúde enviou nota registrando que entre 100 mil partos realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), por ano, em Pernambuco, 60% acontecem na rede estadual ou em unidades conveniadas. E que, neste “momento de grave crise em todo o País, a prioridade é a manutenção e qualificação dos serviços já ofertados” – o que significa que não pretende levar adiante o plano criado pelo próprio governo, seis anos atrás.
Fonte: Jornal do Comercio.