A médica clínica do Ihene, Paula Karina, também é doadora de sangue (Foto: Cortesia)
Alta demanda, poucos doadores. O Dia Mundial do Doador de Sangue, datado no dia de hoje (14), é celebrado com o objetivo de conscientizar a população sobre a importância da doação de sangue, um ato simples, mas ainda pouco colocado em prática. A conscientização coletiva, que já é marca deste dia, torna-se ainda mais necessária neste ano, uma vez que a pandemia da Covid-19 não deu trégua e o número de internações por contaminações só cresce.
Com isso, vê-se o crítico momento enfrentado pelos hemocentros brasileiros. De acordo com o Ministério da Saúde, somente cerca de 1,6% dos brasileiros são doadores de sangue, percentual que representa 16 doações para um grupo de mil habitantes. Em Pernambuco, o cenário não é muito diferente. Entre as rotineiras campanhas engatadas pelos centros de doações, por conta do baixo estoque de sangue nos locais, a demanda por transfusões não para de crescer.
Atenuada nesse processo inversamente proporcional, a médica clínica do Instituto de Hematologia do Nordeste (Ihene), Paula Karina, explicou a atual sobrecarga sobre os hemocentros. “Antes, a demanda era muito voltada para outras doenças, mas agora a gente está tendo que lidar também com a pandemia e com a alta demanda, porque os casos não estão baixando. Além disso, as doenças crônicas e as cirurgias de urgências também não pararam; tratamento de leucemia, derrame. Isso nos sobrecarregou ainda mais”, disse.
Para Karina, os centros de coleta são associados a possíveis locais de contaminação do novo coronavírus, o que dificulta ainda mais o engajamento da sociedade no contexto pandêmico. "As pessoas ficaram com medo de doar, com receio de pegar Covid”, argumentou. Outras, temem a agulha ou o próprio sangue.
No entanto, é preciso enxergar, na prática, a importância de ser um doador regular, e transformar o gesto individual em atividade coletiva, encorajando outras pessoas a se tornarem doadoras. Segundo a médica clínica, para que isso aconteça de forma mais célere, alguns tabus ainda precisam ser quebrados sobre o processo de doação.
"Algumas pessoas pensam que doando sangue vão ficar fracas ou doentes. Ainda há muita desinformação, são muitos tabus. Mas é preciso saber que não se corre risco e o volume sanguíneo se recupera em um dia”.
Como funciona a coleta?
A médica clínica Paula Karina explica que são coletados entre 400 a 450 ml de sangue por doador. A depender do fluxo sanguíneo, em dez minutos o processo de coleta do sangue é finalizado. É essencial enfatizar que uma bolsa de sangue pode salvar até quatro vidas.
Depois da coleta, o sangue vai para a refrigeração e passa por um processo de análise de sorologia e tipo sanguíneo. Após isso, é feita a separação de placas, hemácias e plaquetas. Se estiver tudo dentro do previsto, o sangue é direcionado para o paciente. Se a doação for destinada para um paciente nominal, mas o tipo sanguíneo não for compatível com o dele, o sangue é direcionado para a reposição.
"Passei a ver que iria ajudar a salvar vidas"
Cristiano Xavier, 50, iniciou a trajetória de doador aos 18 anos de idade, quando a mãe de um amigo precisou de transfusão. Dali em diante, o motorista de caminhão transformou um ato pontual em um hábito que já dura cerca de 30 anos e até rendeu honraria na Câmara dos Vereadores do Recife, em 2019, pelas mais de 50 bolsas de sangue doadas. Para ele, um gesto de amor que alimenta a alma.
“Eu passei a ver que iria ajudar a salvar vidas e me dediquei a isso. Minha lição de vida é poder ter amor ao próximo, ajudar. Isso para mim é uma honra. Não tenho interesse em nada, faço somente por amor". Mas o doador não para por aí. Além de disponibilizar parte do tempo para fazer o bem, Cristiano é daqueles que forma coro para convocar os amigos a também se tornarem doadores.
“Sempre recomendei que as pessoas coloquem o amor em primeiro lugar que elas não vão sentir dor alguma. É um gesto tão nobre e eu me sinto tão bem, sabendo que aquele sangue vai favorecer vidas. O tempo que eu puder fazer as doações, farei com o maior prazer”.
Exército de super-heróis
Por mais simples que seja, exemplos como os dados por Cristiano são essenciais para salvar vidas. A pequena Sofia Martins, hoje com 6 anos de idade, é prova disso.
O que seria mais uma consulta, entre as tantas já feitas ao longo de quatro meses, se transformou em uma reviravolta de vida. No dia 6 de julho de 2017, com 2 anos e 9 meses, Sofia foi internada e após dez dias na UTI recebeu diagnóstico para Rabdomiossarcoma no ouvido esquerdo, um tumor maligno. De acordo com o Instituto Nacional de Câncer (Inca), esse tumor faz parte do grupo de sarcomas de partes moles, e corresponde por 4 a 5% dos tumores malignos na faixa etária pediátrica, sendo o tipo mais comum na infância. Apesar de saber que algo não estava normal, o momento pegou a mãe da criança, Simone Martins, de surpresa.
"Foi uma correria contra o tempo. Sofia já estava na escola e houve a quebra de uma rotina, um novo mundo, a incerteza de tudo. Ninguém está preparado para ver uma criança tendo o diagnóstico de um câncer". Sem arrodeios, a equipe médica disse: "a perspectiva de cura é grande, mas a gente não sabe se sua filha vai ter resistência para suportar todo o tratamento". O tratamento durou 1 ano e um mês. Ao todo, a criança passou por 56 ciclos de quimioterapia e 28 de radioterapia. No período, o caroço comprometeu totalmente a audição do ouvido esquerdo e parcialmente a visão do olho do mesmo lado.
"Foi uma montanha-russa ficar presa dentro de uma UTI, ver muitas crianças indo embora", conta Simone, de 48 anos. Entre render-se ao desalento e acreditar, ela escolheu exercitar a fé e confiar que Sofia iria se recuperar. A partir disso, uma verdadeira batalha dentro do hospital começou a ser travada por mãe e filha.
O medo da despedida precoce continuou presente, claro, mas a coragem de tornar o momento menos doloroso possível também passou a fazer parte da rotina da bióloga. Em meio às dores que cercam uma Unidade de Terapia Intensiva, Simone começou a criar momentos lúdicos com a filha, para simular o ambiente escolar, que ela tanto sentia falta.
"Eu comecei a fantasiar Sofia e raspei a cabeça. Fazia toda a parte lúdica, ficava de máscara o tempo todo para esconder o choro. Brincava de bolinha de sabão e colocava toucas temáticas, de onça, tigre, que era por onde eu escondia minha tristeza. Quando tinha muito choro dentro da UTI, era o dia que a gente fazia mais barulho também, porque eu não queria que ela se impressionasse com os gritos", descreve.
Após um mês e meio de quimioterapia, o cabelo de Sofia, parte do corpo pela qual a criança tem mais apreço, começou a cair. "Antes de Sofia se ver, eu queria que ela me visse primeiro. E assim eu fiz. Quando ela viu no espelho pela primeira vez que o cabelo havia caído, ela deu risada e disse: ah, mamãe, eu estou parecendo o palhaço carequinha". Mesmo com as tentativas bem sucedidas de fazer a filha atravessar esse processo de forma menos difícil, Simone continuava sofrendo, principalmente nos momentos de aplasia - quando as defesas do organismo caem - por conta das sessões de quimio.
A mãe conta que, em alguns meses, a menina tomava de cinco a oito transfusões de sangue. As sessões são essenciais para a recuperação de pacientes oncológicos, e só foram possíveis porque conhecidos e estranhos disponibilizaram parte do tempo para doar sangue para a menina. Hoje, ela faz o ciclo girar e, onde chega, tenta convencer as pessoas sobre a importância de ser um doador regular de sangue, se mostrando prova viva disso.
"Às vezes, do nada, vamos ao médico e onde ela chega, pergunta: 'você já teve algum problema de saúde quando era pequenininha, tipo hepatite? Não teve? Já pensou em ser uma heroína? Vá em um hemocentro, meus amiguinhos estão precisando do seu sangue, das gotinhas de amor'", diz Simone.
No dia 2 de fevereiro de 2019, Sofia recebeu alta definitiva da internação para a retirada do cateter. Os médicos dizem que a doença está em remissão, ou seja, sob controle. Até completar 14 anos, ela deve continuar fazendo exames periódicos. Mas observou-se, através de exames de imagem e bioquímico, que não há mais nenhuma célula cancerígena nem tumor. O único sentimento possível é de gratidão.
"Eu não sei a quantidade de pessoas que doaram sangue para ela, e eu não tenho como agradecer. Eu digo que a cura de Sofia foi o amor de Deus e dentro dela circula gotas de amor de inúmeras pessoas. Imagina sair de casa para doar para uma pessoa que você nem sabe quem é. É lindo. São anjos, super-heróis mesmo. O que é que substitui o sangue? Nada. Então, somos muito gratas".
Fonte: Diário de Pernambuco