Foto: Minervino Júnior/CB/D.A Press
Além de um vírus mortal e uma profunda crise econômica, 2020 ressuscitou no Brasil um fantasma que há muito tempo se acreditava domado: o dragão da inflação. Puxada pela alta dos preços de alimentos, a carestia reduziu o poder de compra dos brasileiros. E promete não dar trégua em 2021. Este ano, as estimativas dão conta de que o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), inflação oficial, ultrapassará o centro da meta estipulada pelo Banco Central (BC), de 4%. Embora ainda se situe dentro da margem de tolerância, de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo, o indicador é projetado em 4,39% pelo mercado. O que mais assusta, no entanto, é o que está por vir no próximo ano.
A mediana da inflação esperada pelos consumidores para os próximos 12 meses subiu a 5,2% em dezembro, ante um resultado de 4,8% obtido em novembro, segundo o Indicador de Expectativa de Inflação dos Consumidores, divulgado pela Fundação Getulio Vargas (FGV). “O dado acende o sinal de alerta à autoridade monetária. Apesar das projeções de mercado sugerirem inflação dentro da meta para o ano que vem, os consumidores estão preocupados com algumas pressões nos preços, projetando para 2021 um cenário pior do que esperavam para 2020”, diz Renata de Mello Franco, economista do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV.
Em 2020, o grupo alimentação foi decisivo, explica André Braz, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor (IPC) da FGV. “A alta dos preços dos alimentos aumentou o desconforto de famílias de baixa renda, que gastam maior parte do seu orçamento com as refeições”, diz. A culpa, segundo ele, está na desvalorização cambial, que chegou a 40% e, hoje, está em torno de 25%. “Tamanha desvalorização impacta muito nos preços de matérias-primas que acabam virando alimentos, como soja, milho e trigo. Quando esses grãos não viram diretamente alimentos, são usados na ração para animais que a gente consome a carne, como bovinos, suínos e aves”, pontua.
Para o casal Neto Gomes e Luziane Pauline, aposentado e dona de casa, os preços nas prateleiras do supermercado estão assustadores. Por isso, tiveram que passar a economizar e reduzir o consumo de carne. “Tudo está mais caro. Tivemos que fazer cortes no orçamento e na alimentação. A carne está custando R$ 40 o quilo, é um absurdo. O arroz e óleo continuam muito caros”, relata Pauline.
O economista Reginaldo Nogueira, diretor do Ibmec, lembra que a pressão dos alimentos vem de 2019. “O aumento começou no fim de 2019. Em 2020, foi mais forte por conta do câmbio”, ressalta. Ele alerta, no entanto, que o que pode assustar os brasileiros em 2021 é o aumento do aluguel. Os contratos são indexados pelo Índice Geral de Preços ao Mercado (IGP-M), um indicador do atacado e de matérias-primas. “Com a pandemia, houve um congelamento e negociações entre locatários e proprietários. Em 2021, existe um risco claro de repasse”, diz.
E não será pouco. O IGP-M acumula alta de 21,96% em 2020. Até novembro de 2019, para efeito de comparação, estava em 5,12% (veja mais no quadro ao lado). Karoline Leão, moradora de Taguatinga e assistente administrativa, mudou-se, este ano, para um imóvel alugado. Ela teme que, no ano que vem, o valor sofra um reajuste alto demais. “Se houver aumento, não vou conseguir arcar”, relata. Ela já está preparada para negociar o valor. “Vou tentar conversar e chegar a um valor justo”, diz. A orientação de Nogueira é justamente essa: buscar negociações contratuais.
Política de juros
O economista explica que o Banco Central terá de rever sua política de juros se quiser frear a escalada da inflação. “Por causa da pandemia e da queda da atividade econômica, o BC cortou os juros de maneira muito agressiva. Com inflação acima de 4% e a taxa básica Selic em 2% ao ano, estamos com juro real negativo”, alerta. Como o efeito da Selic demora entre seis a nove meses para surtir efeito na economia, segundo Nogueira, a autoridade monetária deverá aumentar juros de forma rápida e mais forte do que se espera. “Para acertar a inflação, o BC vai ter que antecipar a política de juros ou não vai atingir a meta, que é de 3,5% em 2021.”
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, já reconheceu que a previsão da autarquia para a inflação dos preços administrados, em 2021, de 4,27%, está acima das estimativas do mercado, de 3,5%. Os preços administrados são aqueles regulados por contrato ou que dependem de autorização do governo para serem reajustados. Como muitos foram represados por conta da pandemia, o temor é de que haja uma explosão de reajustes. “Reconhecemos que vai ter uma subida da inflação em 2021”, chegou a afirmar Campos Neto.
O professor Joelson Sampaio, coordenador do curso de economia da Escola de Economia de São Paulo (EESP) da FGV, assinala que os alimentos vão continuar pressionando a carestia e os preços administrados serão um componente negativo importante. “Realmente, o impacto será forte porque não foram reajustados, por conta da pandemia e também das eleições”, diz. Na lista de administrados, estão plano de saúde, energia elétrica, tarifas de transporte e mensalidades escolares. Todos com ajustes anuais que não mudaram de valor em 2020 e podem subir duas vezes no ano que vem.
Efeito cambial
Para 2021, o câmbio continuará a ter papel relevante. “Porém, o que desvaloriza nossa moeda, mais do que as demais, é o descontrole das contas públicas e o endividamento. O lado fiscal é mais importante para entender e pensar a dinâmica futura da inflação. Podemos entrar no que se chama de dominância fiscal, uma situação em que a política monetária perde a autonomia”, alerta o professor do Insper Eduardo Correia. O termo significa que, se a inflação continuar subindo, o governo e o Banco Central vão estar em uma sinuca de bico.
O economista esclarece: “O juro real negativo é cômodo para o governo do ponto de vista fiscal, porque paga menos juros da dívida. O perigo é, se a inflação continuar subindo e o BC subir juros, isso pode fazer com que o serviço da dívida pese demais no orçamento do governo. Ou o BC vai perder a autonomia, não subindo a Selic como devia, para ajudar o lado fiscal, ou, se mantiver a independência e elevar a Selic, o governo pode caminhar rapidamente para o estouro do teto de gastos”, explica.
Se a autoridade monetária não se impuser, diz Correia, o cenário será uma volta ao passado. O impacto do dragão da inflação será direto na popularidade do presidente Jair Bolsonaro, como ocorreu com a ex-presidente Dilma Rousseff. “A popularidade que o presidente ganhou com o auxílio emergencial talvez não seja tão grande quanto o tombo que terá ao tirar o benefício se o país estiver mergulhado numa alta de preços, com a perda de poder de compra da população”, estima. “Torço para que cada um faça sua parte.”
Fonte: Diário de Pernambuco