Foi por volta dos 17 anos, já perto de atingir a maioridade, que Welton Soares pôde, enfim, acrescentar, após determinação judicial, o “dos Santos” do pai biológico no nome completo que o identifica na certidão de nascimento. Hoje aos 29, o designer gráfico conseguiu construir uma relação de afeto e respeito pelo genitor, o vigilante noturno Edvaldo Firmino, 55, que, durante toda a infância e adolescência, relutou para assumi-lo como filho. Mas não foi fácil.
“Ele não me registrou. Eu sabia quem era, onde morava, mas ele não queria me registrar por desconfiar da minha mãe. Como ela sempre dizia quem era e ele morava perto de casa, eu passava por ele, pedia a bênção. Ele dizia que eu não era seu filho”, recorda Welton, que, só na transição para a fase adulta, por intermédio da Defensoria Pública e da Associação Pernambucana de Mães Solteiras (Apemas), ingressou na Justiça com o pedido de reconhecimento de paternidade, já que não podia arcar com os custos do exame de DNA, requerido no processo.
No Recife, um teste genético de filiação em uma clínica particular custa, em média, R$ 400 e pode chegar a R$ 1.000, dependendo do prazo para a conclusão da análise laboratorial.
Reconhecimento tardio
Todo o trâmite da ação judicial não durou um ano, e a esperada mudança no registro civil se deu após décadas de negação por parte de quem tinha o dever de estar presente e cuidar. “Ele foi intimado pela Justiça, e fizemos o teste em uma clínica lá no Derby [no Recife]. Poucos dias depois, fomos chamados para o fórum, onde deram o resultado”, conta Welton.
No momento da notícia, o sentimento foi de revolta. “Eu disse: ‘[Ele não é] pai não, é um palhaço. Teve esse tempo todo sem precisar de exame que provasse o que eu já sabia’. Mas, depois, ele veio conversar comigo, tentar mostrar seu lado da história, fui tentar compreender e segui em frente”, prossegue o designer.
Hoje ambos têm uma convivência mais harmônica e se reconhecem em uma relação familiar, passando juntos datas comemorativas como o Dia dos Pais. “É como se nunca tivesse existido essa rejeição. Tenho um carinho muito especial por ele”, diz Welton.
Apesar de toda a desconfiança do passado, Edvaldo, que já tem outros três filhos, disse que ficou feliz ao confirmar que tinha mais um. “Quando eu soube que era o pai mesmo, foi maravilhoso. A primeira coisa que fiz ao sair do fórum foi buscar uma mesa e comemorar, tomar um refrigerante”, conta. “Eu faço por ele o que eu faço pelos outros. Não mora comigo, mas, no que eu puder fazer para ajudá-lo, estou sempre disponível”.
Ausência histórica
Neste fim de semana em que se comemora o Dia dos Pais, a Folha de Pernambuco fala de ausência. A negação da paternidade, realidade histórica no Brasil, finca raízes em uma sociedade patriarcal que permite tirar do homem o peso da responsabilidade sobre as relações afetivas com as pessoas por quem deveria zelar. Neste caso, os seres humanos que ele próprio gerou, mas age como se fossem “produções” exclusivas da mulher, produzindo traumas e conflitos que, poucas vezes, levam a um desfecho feliz como o de Welton e Ednaldo.
Dados levantados pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), que mantém uma página específica sobre o assunto no Portal da Transparência, mostram um crescimento desse fenômeno. Dos mais de 2,6 milhões de crianças nascidas em todo o País no ano passado, 163.589 foram registradas pelos cartórios sem o nome do pai na certidão, o que representa 4% a mais do que em 2020.
O Norte e o Nordeste foram as regiões que apresentaram os maiores percentuais de genitores ausentes em relação ao total de nascimentos: 9% e 7%, respectivamente. Em Pernambuco - que, em 2022, só entre 1º de janeiro e a última sexta-feira (12), já teve 4.489 recém-nascidos sem esse registro, ultrapassando os 4.390 constatados no mesmo período no ano passado - a taxa de 2021 chegou a 6%. Em 2020, foram 5%.
Traumas patriarcais
Como todas as outras questões sociais relativas às desigualdades de gênero, a ausência paterna, ou o aborto masculino, tem origem no machismo presente em toda sociedade patriarcal, que centraliza na representação do homem enquanto “chefe de família” os privilégios de classe e os valores culturais de maior prestígio.
A psicóloga Telma Melo, integrante do Conselho Regional de Psicologia de Pernambuco (CRP-02), explica que a figura do pai é fundamental na construção da identidade de uma pessoa.
“Ele é importante para que o indivíduo se reconheça e também dá à criança uma noção de socialização”, comenta. “Muitas vezes, quando não há uma ausência total, ocorre uma ‘ausência presente’, quando o pai está ali, mas não contribui nos cuidados, e a mãe acaba se sobrecarregando demais sem conseguir dar conta de tudo, sendo muito cobrada. Mas ela também precisa de estabilidade”.
Uma criança que cresce nesse contexto pode desenvolver diversos transtornos psicológicos. “Quem deveria proteger e cuidar, abandona, e isso traz marcas profundas na constituição desse sujeito, que pode se tornar inseguro, com dificuldade de aprendizado em algumas áreas e, muitas vezes, quadros de ansiedade e depressão”, afirma a psicóloga.
Processo judicial
O reconhecimento de paternidade é um direito previsto em lei que, para ser garantido, passa pelas instâncias da Justiça (veja na arte acima). A ação deve ser movida pelo filho ou pelo representante legal dele, que precisa pagar pela realização do teste de DNA, principal prova do processo. O exame é gratuito para pessoas representadas pela Defensoria Pública de Pernambuco, que contrata, por meio do Projeto Reconhecer, um laboratório para fazer a análise dos materiais genéticos.
De acordo com o juiz titular da 1ª Vara de Família e Registro Civil da Capital, Clicério Bezerra, os pedidos de investigação são muito recorrentes. “Existe um número razoável de processos. A Justiça faz muitos mutirões de reconhecimento de paternidade que contam com a ajuda de ONGs e associações. O pai é convocado e, se não reconhecer espontaneamente, vai para a Defensoria, que ingressa com a ação”, detalha.
Outra forma de iniciar uma investigação de paternidade ocorre via Ministério Público, que é acionado pelo cartório quando a mãe registra a criança sem revelar o nome do pai. O promotor de Justiça Luiz Guilherme da Fonseca Lapenda, coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa da Infância e da Juventude (CAO IJ) da instituição, lembra que o reconhecimento tardio pode ser feito voluntariamente no órgão de registro civil.
“Basta o comparecimento do pai, mãe e certidão nascimento do filho, com a concordância da genitora, todos com documentos originais. Para maiores de 18 anos, a anuência deste também se faz necessária. Havendo recusa, deve-se buscar a judicialização”, explica. No início deste mês, o MPPE assinou um convênio com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) para a realização do teste sem custos.
Fonte: Folha de Pernambuco
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